MULTIPARENTALIDADE: DEVER OU POSSIBILIDADE?
Ao longo dos anos, o conceito de família veio sendo tão ampliado que as definições mais antigas já não refletem necessariamente os modelos familiares encontrados na atualidade. Na realidade, o decorrer dos anos fez com que as crescentes transformações sociais causassem uma grande evolução no próprio Direito de Família.
Para Dimas Messias de Carvalho[1], família “é a comunidade formada pelo afeto de seus membros, parentes ou não, que reciprocamente se enxergam e se consideram como entes familiares, independentemente da opção sexual.”
Nesse sentido, é possível verificar que, hoje em dia, o conceito familiar vai muito além dos laços biológicos, podendo ser reconhecido como membros da entidade familiar aqueles ligados apenas pelo afeto. A relação familiar socioafetiva, portanto, nada mais é do que um ato de vontade que decorre do afeto, independente de vínculo sanguíneo.
De outro lado, também existe a possibilidade de haver uma família mista, com a mistura de membros ligados pelos laços biológicos e membros ligados pelo afeto, assim chamados de família multiparental.
Ainda de acordo com o entendimento do autor Dimas Messias de Carvalho, “a família multiparental pode ocorrer quando o filho possui dois pais ou duas mães, sendo um biológico e outro socioafetivo, sem que um exclua o outro”.[2] Em outras palavras, a multiparentalidade é a possibilidade de um filho possuir simultaneamente dois pais, ou duas mães, sejam eles biológicos ou não, em seu registro civil, sem que o registro por parte de um exclua a possibilidade de registro do outro.
De acordo com o artigo 1.593 do Código Civil: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Assim, o próprio dispositivo normativo fez consagrar que o parentesco não decorre apenas dos laços de sangue, prevendo que as relações de parentescos podem surgir também por outra origem.
De acordo com os ensinamentos de Paulo Lôbo[3]:
"O despertar do interesse pela socioafetividade no direito de família, no Brasil, especialmente na filiação, deu-se, paradoxalmente, no mesmo tempo em que os juristas se sentiram atraídos pela perspectiva de certeza quase absoluta da origem biológica, assegurada pelos exames de DNA. "
Alguns ficaram tentados a resolver todas as dúvidas sobre filiação no laboratório. Porém, a complexidade da vida familiar é insuscetível de ser apreendida em um exame laboratorial. Pai, com todas as dimensões culturais, afetivas e jurídicas que o envolvem, não se confunde com genitor biológico; é mais que este.
Mas não é só: a relação familiar vai muito além dos laços biológicos, no entanto, a relação socioafetiva e a possível multiparentalidade devem sempre observar o melhor interesse da criança, princípio que norteia o Direito de Família[4]:
"O princípio do melhor interesse ilumina a investigação das paternidades e filiações socioafetivas. A criança é o protagonista principal, na atualidade. No passado recente, em havendo conflito, a aplicação do direito era mobilizada para os interesses dos pais, sendo a criança mero objeto da decisão. O juiz deve sempre, na colisão da verdade biológica com a verdade socioafetiva, apurar qual delas contempla o melhor interesse dos filhos, em casa caso, tendo em conta a pessoa em formação."
Nesta esteira, foi em busca do melhor interesse da criança que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão recente, optou por negar provimento ao recurso no qual uma mãe pretendia que sua filha tivesse o pai biológico em seu registro civil, além do pai socioafetivo (que ainda vivia com a mãe e participava ativamente da vida da criança)[5].
No caso em questão, o estudo social apontou que o pai biológico não demonstrou qualquer interesse em registrar a filha ou em manter vínculos afetivos com ela, de modo que a única justificativa da ação era tentar forçar uma relação da criança com o pai biológico. Nesta hipótese, a Turma entendeu que independente do vínculo biológico, a multiparentalidade não seria a solução adequada, pois não atendia ao melhor interesse da criança.
Por outro lado, em situação diversa, julgada no ano de 2017, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decidiu que é possível um filho receber a herança tanto por parte do pai biológico quanto por parte do pai socioafetivo[6].
Este julgamento evidencia o enunciado nº 9 do IBDFAM, de que “a multiparentalidade gera efeitos jurídicos”[7] e o entendimento de que a paternidade socioafetiva não exclui de responsabilidade e os deveres o pai biológico, vez que o próprio dispositivo do artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) prevê o reconhecimento do estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
Tal possibilidade, é de extrema relevância nos dias atuais, posto que se adequa aos anseios sociais mais contemporâneos, em que cada vez mais é possível encontrar modelos de famílias ligadas por laços de afeto, sem qualquer vínculo biológico, de modo que o Direito necessita acompanhar a essa evolução, tendo em vista que nos dias de hoje os laços de afeto até mesmo superam os laços biológicos.
Pelo exposto, é de se destacar que a multiparentalidade é uma possibilidade atual, mas não um dever ou consequência automática da convivência, de modo que quando não for observado o melhor interesse da criança, o instituto não deverá ser aplicado, sob pena de ofender a este princípio basilar do Direito de Família.
[1] CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famílias. São Paulo, Editora Saraiva, 2015. Livro digital.
[2] CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famílias. São Paulo, Editora Saraiva, 2015. Livro digital.
[3] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo, Editora Saraiva, 2011. Livro digital.
[4] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo, Editora Saraiva, 2011. Livro digital.
[5] STJ, Reconhecimento de multiparentalidade está condicionado ao interesse da criança. Disponível em:<http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Reconhecimento-de-multiparentalidade-est%C3%A1-condicionado-ao-interesse-da-crian%C3%A7a>. Acesso em: 16 de outubro de 2018.
[6] STJ, Filiação socioafetiva não impede reconhecimento de paternidade biológica e seus efeitos patrimoniais. Disponível em <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Filia%C3%A7%C3%A3o-socioafetiva-n%C3%A3o-impede-reconhecimento-de-paternidade-biol%C3%B3gica-e-seus-efeitos-patrimoniais>. Acesso em: 16 de outubro de 2018.
[7] IBDFAM, enunciado nº 9. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5819/IBDFAM+aprova+Enunciados>. Acesso em: 16 de outubro de 2018.